sexta-feira, 21 de novembro de 2008

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O dedinho tem andado tão confuso e desanimado que perdeu o impulso para escrever. Felizmente, ou não, quando isso acontece, aparece um desafio que acaba por levar as letras ao sítio e alinhar um texto. Desta vez, o desafio veio da revista Obscena, que acaba de publicar o número de Novembro/Dezembro e dedica um «dossiê» ao orçamento do Ministério da Cultura para 2009. Para além deste texto, o dedinho recomenda a leitura de todo o dossier.


A questão dos recursos financeiros colocados à disposição das actividades culturais e artísticas é de natureza política, muito mais do que económica. É uma questão que interroga as missões fundamentais do Estado, o conceito de sociedade que propomos ou, em última análise, o paradigma humano que perseguimos.

Quando o Ministro da Cultura afirma que «Pessoa vale mais do que a PT, enquanto produto de exportação» está a incorrer numa confusão que, mais do que conceptual, chega a ser ontológica. Quando afirma, no documento de enquadramento do Orçamento para 2009, que dará prioridade à criação de «um instrumento de mercado, dirigido ao investimento nas indústrias criativas e culturais, sob a forma de um fundo de capital de risco», está a deixar-se deslumbrar por uma linguagem e por um aparelho ideológico que, se pode de facto responder com alguma eficácia a um determinado conjunto de mercados (ligados necessariamente às práticas artísticas reprodutíveis e, portanto, passíveis de industrialização e de consumo de massas), deixa irremediavelmente de fora o coração mesmo da actividade de um Ministério da Cultura.

Há que saber distinguir, em primeiro lugar, entre a actividade artística nuclear e as indústrias culturais. O gesto artístico de base, cadinho sem o qual o restante edifício não se sustenta, caracteriza-se por uma economia de protótipo, não reprodutível, não massificável, na qual o custo de investimento não pode de nenhum modo ser «rentabilizado» através de uma «cadeia de valor». Se isto é verdade para algumas formas de artes visuais, como a pintura ou a escultura, é-o muito mais para as artes colectivas como o teatro ou a dança. Estas práticas artísticas sofrem da chamada «doença de Baumol», assim teorizada, já nos anos 60, por este economista da cultura: em 1664, precisávamos de duas horas e doze actores para representar o Tartufo; em 2008, continuamos a precisar de duas horas e doze actores. Não há ganhos tecnológicos ou novos procedimentos que evitem este «impasse» produtivo. Ora, a criação artística colectiva implica, mesmo assim, um forte investimento em capital humano, implica formas de organização complexas que, na sociedade em que vivemos, não podem estar dissociadas de custos importantes. E mesmo no que se refere a práticas artísticas mais industrializáveis, apenas a criação «mainstream» pode almejar à rentabilidade. O que exclui desde logo as práticas experimentais, ou não necessariamente maioritárias, que visam um conjunto de fruidores que não será necessariamente tão numeroso que permita economias de escala. Muito mais, neste mundo globalizado em que vivemos, se nos reportarmos a um país pequeno com uma língua minoritária.

A pergunta que devemos colocar a nós próprios desloca-se, então, para outro território, o da política. Devemos, enquanto comunidade organizada, sustentar os custos da criação artística? Em caso afirmativo, porquê? O que equivale a perguntarmo-nos a que modelo de sociedade e de cidadão nos reportamos. Desejamos ser um mero conjunto de animais humanos, portadores das mesmas referências, pragmatizados em função de simples resultados económicos e funcionais, tendentes ao consenso abúlico perante questões existenciais? Ou, pelo contrário, compreendemos o sentido crítico, a capacidade de elaboração, de invenção de novas formas, como algo de desejável? Queremos cidadãos independentes, trabalhadores com sentido de autonomia, ou meros depositários da decisão hierárquica e da propaganda do poder? Trinta e quatro anos depois da nossa transição democrática, parece ser ainda difícil responder a uma questão tão simples. A mera confusão ente entretenimento e fruição artística (hoje tão comum que leva mesmo a Ministra cessante a defender, sem se rir, um Ministério da Cultura e do Turismo) deriva desta indecisão matricial. O poder esqueceu (ou já não quer saber) que a leitura poética do mundo ou a sátira são elementos de inquietação, às vezes de ruptura, muito poucas vezes de coesão. Que a sua justificação última, mesmo de um ponto de vista cínico, poderá ser o facto de, no fundo, protegerem quem exerce o poder contra as suas piores derivas, permitindo-lhes uma imagem crua do seu próprio excesso.

O acesso à criação e à fruição artísticas, direito garantido em abstracto pelo art. 78º da nossa Constituição, contribui, de uma maneira que mercado algum sabe sequer avaliar, para a qualificação das pessoas e para a sua capacidade de intervenção cidadã. O que, em última análise, justifica o investimento na criação artística, sem paninhos quentes, como um investimento nos cidadãos. Um investimento imperativo, de acordo com o sistema político-constitucional que (ainda) nos rege. Um investimento que, ainda por cima, é geometricamente cumulativo: Roger McCain chama «gosto», no contexto da economia da cultura, a um «activo económico específico que provém tanto da formação específica para apreciar os bens culturais, como da quantidade de bens do mesmo tipo consumidos anteriormente». O que, a um tempo, deita por terra o argumento populista de que deve dar-se ao povo aquilo de que o povo gosta e aproveita ainda para recolocar no sítio próprio a tal questão da «rentabilidade» do investimento.

O problema, aparentemente, estará em saber como concretizar esse tal direito à criação e à fruição que a Constituição nos garante. Ultimamente, parece pensar-se que a eficácia nessa concretização poderá ser garantida através da aplicação ao domínio cultural das regras dessa coisa inefável a que hoje se chama «gestão». Que essa eficácia pode ser mensurável através de qualquer coisa palpável a que não resistiríamos a chamar «indicadores». Assim se inventou a empresarialização das estruturas públicas de criação, com a correspondente imputação de modelos de gestão e de «accountability» que provêm da ideologia dos mercados (não integrando sequer a recentíssima ideia de que estes implodiram por força das suas regras internas).

Mito dos tempos modernos, a «gestão» seria pouco mais ou menos uma ciência abstracta com virtualidades mágicas, capaz de pôr finalmente os artistas nos eixos e revesti-los da seriedade que a coisa económica exige. Por isso se nomeiam, neste pequeno país confuso, banqueiros para cargos de topo na administração de processos culturais. Por isso se promovem as miríficas parcerias público-privadas em que o estado investe e os privados gerem. Por isso as EPEs do Ministério da Cultura se aparelham de Conselhos de Administração ao lado (ou acima) da respectiva Direcção Artística. Assim se compromete a lógica própria de uma actividade simples, que não tem outra ciência senão a criação segundo as suas regras próprias e a sua mediação com públicos progressivamente mais alargados e penetrando mais fundo no todo social, por um lado, e a boa administração de um orçamento que se desejaria suficiente e gerido com probidade, por outro. Assim se compromete, portanto, a «rentabilidade» específica de um processo, em nome de uma outra rentabilidade que é inalcançável.

Neste contexto, não é de admirar que os orçamentos do Ministério da Cultura desçam todos os anos até à patética fracção de 0,3% do Orçamento Geral do Estado na qual se encontram presentemente. Não se sabendo para o que serve nem se confiando na dupla capacidade dos profissionais e das entidades públicas para garantir a tal probidade, não se percebendo que não se trata de um custo, mas sim de um investimento, é natural que os Ministros das Finanças deste mundo procurem poupar aqui uns tostões. Por falta de visão política ou pela afirmação de uma visão política que, se fosse declarada às claras, seria considerada inaceitável. Mas também por incompetência técnica, pela incapacidade dos gestores políticos sectoriais de compreender o fenómeno e tratá-lo na sua devida dimensão.

Fechando o círculo, repito que a questão da cultura é política e não económica, e muito menos financeira. O orçamento do MC para o próximo ano corresponde a um vigésimo do que o primeiro-ministro anunciou, em 2004, que cortaria à despesa pública até ao final da legislatura. Um vigésimo da «gordura» orçamental! Se tivesse cumprido o seu programa de governo (pausa para gargalhadas), triplicá-lo-ia e, mesmo assim, chegaria apenas a um sexto vírgula seis do problema. O que, para a gestão dos dinheiros do Estado são amendoins. Que bem distribuídos a estes macacos que somos todos nós, garantiria o começo de qualquer coisa que nos transformaria finalmente num país mais aceitável.

Enfim, multiplicar menos por mais dá, aritmeticamente, qualquer coisa de negativo. Como qualquer miúdo da quarta classe saberá explicar.

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Cultura, pra que te quero?

O estado inane da cultura, segredava-me há pouco o dedinho, bem como a ausência de políticas consequentes num domínio que é tão essencial à qualificação das pessoas como imprescindível para a compreensão crítica que as sociedades têm de si próprias, não são, consolemo-nos, exclusivo português. O presidente Nicolas Sarkozy, essa espécie de Pedro Santana Lopes a sério, como lhe chamava há dias Ricardo Pais, «s'emmerde» quando, por mera distração, entra num Teatro. Não compreende um gesto artístico que não seja motivado pela necessidade de «entreter», nem imagina uma actividade que não procure a legitimação do número. Ou que, no limite, não exalte «o sucesso, a excelência, a conquista e o domínio do mundo».
Um Presidente assim rompe um consenso que, anterior a Louis XIV, durou em França até François Miterrand. Que permitiu aquilo que em Portugal seria um paradoxo: os dois ministros da cultura mais emblemáticos do séc. XX são André Malraux, gaullista de direita, e Jack Lang, socialista de esquerda.
Mas, num país como a França, a atitude do estadista encontra uma sociedade que se lhe opõe. Ou que, pelo menos, demorará a aceitá-la.
Já entre nós, lembrou o dedinho, o desinvestimento e a desconsideração que qualquer dos nossos profundamente incultos governantes se lembre de fazer na cultura e nas artes encontra eco, não apenas popular, mas igualmente entre as «elites».
Veja-se o caso paradigmático de Pacheco Pereira, intelectual financiado pelo Estado que abomina o financiamento do estado à cultura e, portanto, se tornou no paladino de Rui Rio e da sua política populista. Veja-se o caso da reiterada proposta de «acabar de vez com o Ministério da Cultura», há tempos afirmada pelo Administrador de Serralves, Gomes de Pinho, e ontem retomada em crónica no Público pelo arquitecto Walter Rossa, emérito professor de Arquitectura na Universidade de Coimbra.
Compreendo, terminava o dedinho, que perante tanta incompetência e inutilidade se proponha acabar com a coisa, mas já ninguém se lembra da parábola do bébé e da água do banho?

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Obama, pra que te quero?

O dedinho nem estava para seguir noite eleitoral nenhuma. Tem andado constipado e precisa, sobretudo, de dormir. No entanto, entusiasmou-se com a primeira ronda internáutica pelas televisões internacionais, foi ficando... Inevitavelmente, adormeceu no sofá. Acordou, dormente, pelas quatro e meia ao som de uma voz reconhecível que discursava. Era Mr. McCain que fazia o seu discurso de derrota. Missão cumprida, pensou. Depois, não pôde evitar pensar também que as eleições americanas são sempre uma espécie de armadilha mediática, às quais prestamos atenção como se fossem nossas, como se tivessem realmente o poder de mudar o mundo. Depois, lembrou-se dos milhares de milhões de dólares que custa uma campanha (sobretudo a de Obama, a mais cara de sempre) e pensou na crise e noutras coisas igualmente tristes. Ficou tão triste, tão triste, que aterrou na cama a lembrar-se desse grande «pensador» português que repete incessantemente: «Não há almoços grátis»...